Afoga-me
Afoga-me na escuridão da noite orvalhada, no brilho dos teus olhos, no manso do remanso das nebulosas. Apaga-me as dores, as saudades, as mágoas, a tendência das articulações. Livra-me das lembranças do tempo que nos escapou, que se esvaiu como agua de rio. Ajuda me a conter essa emoção que emana, não se cala, nem se consente nessa luta inglória, profunda e complexa de não me perder dos seus olhos. Minimiza-me o delito das evidências, a arte do gesto, a magia da estrela guia que já não nos guia mais. Afasta-me desta intermitente controvérsia da percepção do tempo do ontem do hoje. Acalma a impetuosidade onde habita o que se foi. A eloquência, a anarquia esbaforida, a fantasia nestes dias de névoa onde não vejo mais. Apaga-me os traços da hereditariedade, a origem das reflexões fora de hora, o inacabado, a repugnância da inação diante da perda. Devolva-me o sagrado, o espetáculo da fé renovada que já não cabe mais. Alivia-me o arrebatamento, a confiança mentirosa, o vil, o ordinário, o sórdido. Devolva-me os sonhos de envolvimento materno, paterno, e místico de dias sem luz. Alivia-me as tragédias, as sombras, o ser, o saber, a luta inglória das reminiscências que adiam. Liberta-me nos dias de maio, no tempo que se adiantou bruscamente da fé. Tira-me a incerteza de uma certeza que sinto medo em duvidar, nos dias de chuva e fragilidade. Esconda-me a distância no oculto, no escuro do cerrar dos olhos, no brilho que não brilha mais perto. Levita-me no tempo, no espaço inexorável de estrelas que não caem, de nascentes que não brotam e de lágrimas que não choram mais. Afoga-me...
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